domingo, 22 de agosto de 1999

Antifundamentalistas

CIÊNCIA
Retirada da evolução de provas escolares no Kansas reacende debate sobre ciência e religião
Antifundamentalistas
Divulgação
O biólogo britânico Richard Dawkins, autor de "O Gene Egoísta"


RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Cientistas eminentes divergem sobre qual deve ser o relacionamento entre ciência e religião e sobre as incursões predatórias dos fanáticos religiosos na divulgação da ciência.

O debate voltou à tona após a retirada, no início do mês, da teoria da evolução darwiniana dos currículos escolares obrigatórios no Estado de Kansas, no centro dos EUA, por pressão de protestantes fundamentalistas. Mas a discussão também se alimenta das posições aparentemente mais liberais da Igreja Católica.

O paleontólogo Stephen Jay Gould, autor de vários best-sellers tendo a evolução como principal tema, é um dos que defende uma linha conciliatória, apesar de ser um constante crítico dos fundamentalistas e ter participado ativamente das querelas jurídicas no final dos anos 70.
Nessa época, os chamados "criacionistas" queriam que sua doutrina religiosa sobre a origem da vida -uma leitura literal da Bíblia- fosse adotada como uma teoria científica rival ao evolucionismo. A Justiça americana foi contra essa pretensão.

O mais recente livro de Gould trata do tema ("Rocks of Ages: Science and Religion in the Fullness of Life"); e em revistas como a semanal "Time", ou a porta-voz dos céticos americanos, "Skeptical Inquirer", ele defende que religião e ciência são esferas de conhecimento "complementares".

Para o paleontólogo, os dois campos estão totalmente separados -a ciência é a busca do conhecimento factual sobre o mundo natural, e a religião é a procura de sentido espiritual e de valores éticos. Para ele, essa separação implica que nenhuma teoria científica constitui ameaça à religião.

Gould, em sua coluna na revista "Natural History", afirmou que "a rede da ciência cobre o universo empírico: do que ele é feito (fato) e por que ele funciona assim (teoria). A rede da religião se estende sobre questões de sentido moral e valor".

Já Richard Dawkins, biólogo e também autor de best-sellers, critica esse tipo de atitude. "Uma flacidez covarde do intelecto aflige pessoas de outra maneira racionais quando confrontadas com religiões longamente estabelecidas", disse referindo a Gould.

Para Dawkins, a separação não é tão nítida assim. Ele lembra que até mesmo a Bíblia não é utilizada como a autoridade suprema em questões de moral pelos próprios fundamentalistas que defendem que ela foi diretamente escrita por inspiração divina.

Na prática, diz ele, as pessoas só pegam da Bíblia trechos mais atraentes -como o sermão da montanha- e ignoram os mais desagradáveis -como o "dever" de matar adúlteras a pedradas ou castigar até netos de criminosos.

"Existe algo de oportunista e desonesto na tática de alegar que todas as crenças religiosas estão fora do domínio da ciência. De um lado, histórias de milagres e a promessa de uma vida após a morte são usadas para impressionar pessoas simples, ganhar convertidos, e inchar as congregações", afirmou Dawkins em um artigo na revista científica "Quarterly Review of Biology".

"É precisamente seu poder científico que dá a essas histórias seu apelo popular. Mas ao mesmo tempo é considerado um golpe abaixo da cintura se sujeitarmos as mesmas histórias aos rigores ordinários da crítica científica: esses são assuntos religiosos e portanto fora do domínio da ciência", continua o biólogo.

Para Dawkins, doutrinas como a virgindade de Maria, a sua assunção ao céu, ou a ressurreição de Jesus são alegações de natureza científica que poderiam ser investigadas. "Ou Jesus teve um pai corpóreo ou ele não teve. Isso não é questão de "valores" ou de "moral", é questão de sóbrio fato."

Dawkins afirma que não quer dizer que a doutrina da assunção de Maria seja necessariamente falsa ("embora eu ache que seja"); está apenas refutando a alegação de que ela estaria fora do domínio da ciência como quer Gould.

"Ou o corpo de Maria deteriorou-se quando ela morreu, ou foi fisicamente removido deste planeta para o céu" -ou seja, diz ele, "a assunção da virgem é transparentemente uma teoria científica", já que também se trata de uma afirmação sobre um evento do mundo natural.