domingo, 27 de janeiro de 2008

Mas... é ciência?

Para biólogo, declarações de ministra a favor do criacionismo mostram que cientistas brasileiros não podem mais ignorar o debate sobre limitações dessa pseudociência








Diorama representa paleontólogos em museu criacionista dos EUA, que afirma que o homem conviveu com os dinossauros


SANDRO DE SOUZA


No prólogo do seu livro "But is it Science?" ("Mas é Ciência?"), o filósofo Michael Ruse descreve sua experiência como testemunha no processo movido pela ONG "American Civil Libertation Union" contra o Ato 590, instituído pelo Estado do Arkansas, nos EUA, em 1981, que obrigava o ensino do criacionismo nas escolas estaduais de ensino básico.

O objetivo principal desse ato era contrapor o criacionismo ao evolucionismo, a teoria de evolução das espécies desenvolvida por Charles Darwin e Alfred Wallace em meados do século 19. O testemunho do filósofo foi crucial na sentença do juiz William Overton que, ao dar ganho de causa à ONG, argumentou que o criacionismo não é uma ciência genuína.

As recentes declarações da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, defendendo a exposição de alunos brasileiros às duas visões (criacionista e evolucionista) trouxeram o debate novamente à tona no país. O movimento criacionista brasileiro vem se organizando de forma efetiva. Organizações como a Sociedade Criacionista Brasileira (http://www.scb.org.br/) e a Sociedade Origem e Destino (http://www.origemedestino.org.br/) existem há décadas.

Antes da ministra, outras figuras públicas (o casal Garotinho) já haviam agido no sentido de inserir o criacionismo nos currículos escolares do Brasil. Nos EUA, o debate criacionismo X evolucionismo ocupa espaço significativo na imprensa há quase um século. Em 1925, por exemplo, o Estado do Tennessee condenou o professor de ginásio John Scopes por incluir a evolução em suas aulas de biologia. Só no final dos anos 1960, a Suprema Corte americana declarou constitucional o ensino de evolução.

A interpretação dos juízes americanos de que o ensino do criacionismo fere a Primeira Emenda da Constituição americana, que dissocia a "igreja" do "Estado", fez com que os criacionistas americanos tentassem caracterizar o criacionismo como uma teoria científica, um contraponto à teoria da evolução.

O ponto principal reside, então na seguinte pergunta: podemos caracterizar o criacionismo como ciência? Há dois componentes conceituais importantes na definição de ciência. Qualquer hipótese ou teoria científica precisa estar baseada em evidências. Além disso, uma hipótese ou teoria científica deve ter uma capacidade preditiva.

Tais predições devem ser então investigadas e testadas por meio de experimentos cuidadosamente desenhados e controlados. É o famoso método científico, que vem sendo usado sistematicamente nos últimos 150 anos para corroborar a teoria da evolução de Darwin. Por outro lado, se avaliarmos a literatura criacionista dita "científica", veremos que não há nenhuma evidência do processo de investigação mencionado acima.

A quase totalidade dessa literatura representa ataques à teoria da evolução e nenhuma evidência positiva a favor do criacionismo. A vedete atual dos criacionistas é o que chamamos de "design inteligente". Suponha que você nunca tenha visto um relógio e repentinamente se depare com um Rolex. A sua primeira impressão é que aquela peça não deve ser um produto do acaso, visto a sua complexidade e seu grau de organização.

Ele tem um "design" e, conseqüentemente, um "designer" (criador). Segundo os criacionistas, tal lógica deveria ser aplicada também a animais e plantas, cuja complexidade é inquestionável. Na opinião dos criacionistas, o "design inteligente" seria científico e como tal deveria ser ensinado nas escolas. Assim como nos EUA, é evidente no Brasil que muito do movimento criacionista está centrado em uma agenda conservadora defendida por grupos de cunho fundamentalista. Esse movimento conservador é politicamente mais forte nos EUA, daí a intensidade dos debates nas últimas décadas.

ResponsabilidadeApesar de esses grupos estarem se fortalecendo politicamente no Brasil, principalmente representados pelos evangélicos, sua influência também deve ser creditada ao vácuo gerado pela falta de um debate consistente sobre as limitações do criacionismo como ciência, cuja iniciativa deveria partir da comunidade científica brasileira. Assumir esta responsabilidade é particularmente crítico em um país como o Brasil, onde algo como o debate criacionismo X evolucionismo pode ser visto como supérfluo em face aos outros problemas no nosso sistema educacional.

Em resumo, espera-se que um currículo de ciências forneça o que há de mais correto no nosso entendimento da natureza. Esse processo passa única e exclusivamente pela adoção dos princípios científicos que vêm norteando a aquisição de conhecimento pela humanidade há séculos. Até o presente momento, tais princípios estão em conflito com a base do movimento criacionista.

SANDRO DE SOUZA , 39, é PhD em bioquímica pela USP e chefe do Laboratório de Biologia Computacional do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo