quarta-feira, 1 de outubro de 1997

O papa da ciência

O papa da ciência
Sem alarde, João Paulo II revê 400 anos de preconceitos da Igreja e reconcilia a religião com o mundo da razão





NORTON GODOY

Quando João Paulo II desembarcar no Aeroporto do Galeão, na tarde desta quinta-feira, 2 de outubro, para uma visita de quatro dias ao Rio de Janeiro, os brasileiros poderão fazer uma curiosa comparação com o papa que passou 12 dias no País em julho de 1980 e nove dias em outubro de 1991. Na aparência, o cardeal Karol Wojtyla, hoje com 77 anos, é um homem fisicamente menos vigoroso. No discurso, João Paulo II será o mesmo, se não até mais enfático, defensor dos valores tradicionais da família – da crítica ao aborto à pregação da fidelidade e indissolubilidade do casamento. Na política, ele ganhou a briga contra o bloco comunista e, na Igreja, isolou os bispos vinculados à teologia da libertação e liberou os carismáticos para servirem de ponta-de-lança na guerra para conter o avanço dos evangélicos e fundamentalistas. Mas, após 19 anos de papado, existe uma face menos conhecida do Vaticano de João Paulo II. Nos últimos 12 meses, o papa saltou o abismo de quatro séculos que separavam religião e conhecimento científico. "A ciência pode purificar a religião do erro e da superstição", declarou recentemente. "A religião pode purificar a ciência da idolatria e do falso absolutismo. Cada uma pode conduzir a outra para um mundo mais amplo, onde possam florescer."





"A ciência pode purificar a religião do
erro e da superstição"
Papa João Paulo II

O substancial avanço no trato deste assunto foi sinalizado no final de 1996 num anúncio oficial da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano, que assessora o papa em assuntos não-religiosos. O próprio João Paulo II se encarregou de declarar que a teoria da evolução – o processo de seleção natural dos seres vivos identificado por Charles Darwin em 1859 – "é mais do que uma hipótese". Parece pouco, mas significa que, para a Igreja, o homem deixou de ser um modelo de barro que ganhou vida por um ato divino. A partir de agora, as escolas católicas podem perder o constrangimento de ensinar na aula de religião a criação descrita na Bíblia, enquanto o professor de biologia diz que o homem é parente do macaco. "A idéia de que a teoria da evolução contrariava as escrituras era muito ignorante", admite o padre Paul Schwiezer, da PUC do Rio de Janeiro. "O Gênesis foi escrito como um mito da criação baseado na idéia que o povo daquela época fazia de Deus."





"O infinito do cosmo inspira uma busca científica que se aproxima
de Deus"
Dom Estevão Bittencourt

O papa da ciência voltou a se mostrar em janeiro deste ano, quando formalizou o tardio perdão ao astrônomo Galileu Galilei (1564-1642), que contrariou a tese da Igreja de que o Sol girava em torno da Terra. Mas esta nova política de conciliação com os cientistas nunca se mostrou tão bem quanto na discussão sobre a ovelha Dolly, o clone que fez, pela primeira vez, o homem superar a natureza na geração de um ser vivo. Como grande parte de autoridades e pesquisadores, o Vaticano se mostrou contrário à clonagem de pessoas. Mas nada disse sobre a cópia de animais.

Sob João Paulo II fez-se uma Igreja ligada à Internet e um papado conectado às técnicas de marketing. Os mais conservadores podem indagar que diabos aconteceu com a Igreja Católica, mas talvez fosse mais sensato responder a outra pergunta: o que se passa na cabeça dos cientistas? Mais do que uma guinada da religião em direção à comunidade acadêmica, o que está mudando é a posição dos cientistas em relação à fé. Uma pesquisa feita este ano pela Universidade da Geórgia (EUA) e publicada em abril na revista Nature revelou que 40% dos físicos e biólogos consultados nos Estados Unidos e na Inglaterra têm fortes crenças espirituais. Outros 45% não acreditam no Deus especificado no questionário, mas dizem ter ligação com algum tipo de divindade. Apenas 15% são agnósticos. Não é à toa que os escolhidos para a pesquisa sejam físicos e biólogos. Enquanto os primeiros investigam os limites da matéria e do universo, os outros cuidam do que a Igreja acreditava ser obra exclusiva de Deus: a vida.





Apesar de agnóstico, o astrônomo Carl Sagan defendeu a união entre ciência e fé

Há um mês, a Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) lançou o "programa de diálogo com a religião". Em seguida surgiram o Centro de Religião e Ciência de Chicago e o Centro de Teologia e Ciências Naturais da Universidade da Califórnia. Segundo outra bíblia dos cientistas, a revista Science, eles nunca falaram tanto de Deus. Muitos admitem discutir suas crenças em público. É o caso do físico Charles Townes, que em 1964 recebeu o Nobel pela criação do raio laser. Em seu livro Making waves (Fazendo ondas), garante que ciência e religião não são forças opostas. "Nenhuma religião que está ancorada no mundo ocidental pode se dar ao luxo de ignorar a ciência", disse Townes a ISTOÉ. "Porém, a ciência não pode se dar ao luxo de ignorar Deus." Na sua visão, "a ciência quer saber o mecanismo de funcionamento do universo, enquanto a religião, seu significado". Ou seja, no final do século XX, período em que a ciência mais progrediu, os cientistas chegam a uma constatação quase singela: é como se a ciência mostrasse como funciona o céu e a religião, como chegar lá. E, entre eles, parece ser crescente o número dos que querem chegar lá. Segundo Townes, cientistas e religiosos estariam entrando em um ciclo de reconciliação porque enfrentam questões difíceis e ainda sem respostas, como "o que criou o universo?" ou "devem-se clonar humanos?" "Quanto mais sabemos sobre o cosmo e a evolução, mais esse conhecimento parece inexplicável sem um propósito inteligente", diz, sugerindo a idéia de um "criador".





O anti-religioso Hawking escreveu que a criação do universo "pode revelar a mente de Deus"

Em seu livro póstumo, Billions and billions, o astrônomo americano Carl Sagan (1934-1996) defende uma aliança entre ciência e religião, particularmente na discussão sobre o meio ambiente e os danos causados pelo homem. Já o físico britânico e conhecido "anti-religioso" Stephen Hawking termina seu Uma breve história do tempo (1988) apostando que o estudo do Big Bang (explosão que criou o universo) "poderá revelar a mente de Deus". Nos anos 20, o físico alemão Albert Einstein já havia proferido: "Deus não joga dados", ao negar a possibilidade de ocorrerem fatos aleatórios, idéia defendida pela física quântica.

A reconciliação entre ciência e fé procura achar respostas às indagações pessoais de grandes cientistas, mas também atende a interesses pragmáticos. Líderes católicos americanos tiveram de aceitar o pensamento científico para arrebanhar setores mais ilustrados da sociedade. A dogmática negação de descobertas incontestáveis da ciência servia mais para desmoralizar a Igreja do que para fortalecer a fé. Da mesma forma, vários catedráticos perceberam que a intransigência religiosa afasta de seus cursos jovens católicos talentosos. "Eles acham que alguém irá tentar destruir sua fé", aponta Francisco Ayala, geneticista da Universidade da Califórnia. "A principal razão para a baixa competência científica nas universidades é o temor de muitos estudantes com a ciência", conclui Ayala.





Para o biólogo Jay Golg, rever o amigo Sagan na eternidade é a melhor razão para aceitar a existência da alma

Mais pragmática ainda seria a justificativa econômica. No século XIX, a comunidade científica assumiu uma atitude combativa em relação à religião porque queria manter a sua independência na hora de obter recursos. "Muitas universidades eram então afiliadas às igrejas", explicou a ISTOÉ Arthur Peacock. Reitor da Universidade de Cambridge, Peacock largou a pesquisa para se tornar religioso – hoje lidera a Sociedade dos Cientistas Ordenados, com três mil associados. Agora, diz o seu colega Ayala, o conceito de independência é outro e todos sabem que uma atitude amigável em relação à religião pode ajudar a garantir os recursos. "A estrutura financeira da pesquisa americana depende da boa vontade de um grupo de políticos que valoriza a religião", explica o geneticista. Antagonizar a ciência com a fé religiosa não seria mais um bom negócio.

"Os cientistas que se manifestam contra Deus ultrapassam o limite do que a própria ciência já conseguiu provar. Interpretação é um outro assunto, é uma questão filosófica e teológica", afirmou Peacock. Ele abandonou a crença em Deus no início da carreira. "Hoje sou mais liberal e vejo a religião como um campo a explorar." O geneticista brasileiro Newton Freire-Maia, da Universidade Federal do Paraná, também voltou à fé após longa experiência como cientista ateu. Aos 79 anos, Freire-Maia conta que a sua conversão se deu após um encontro com um frade franciscano. "Quando menino, fui levado a acreditar que a Bíblia deveria ser interpretada ao pé da letra. O frade me convenceu de que a religião é muito mais livre do que eu pensava." O geneticista, que escreve um livro sobre as relações entre ciência e fé, avalia que metade de seus colegas é devota de alguma religião. "Não existe uma pesquisa sobre isso no Brasil, mas nossa porção de cientistas religiosos não difere muito do que acontece nos Estados Unidos ou na Europa."

A busca de respostas para as mesmas perguntas fundamentais, que hoje aproxima ciência e religião, já foi o mais forte motivo para o conflito entre as duas áreas. Em A dança do universo, o físico brasileiro radicado nos Estados Unidos Marcelo Gleiser expõe as razões históricas desse relacionamento conflituoso. "A humanidade sempre procurou modos de expressar seu fascínio pelo mistério da Criação", conta. "Dos mitos de criação do mundo de culturas pré-científicas às teorias cosmológicas modernas, a questão de por que existe algo em vez de nada inspirou e inspira o religioso e o ateu."

Durante séculos, a ciência compartilhou as posições da religião, como a crença de Ptolomeu, do século II, de que o Sol girava em torno da Terra. A partir da Idade Moderna, as respostas que os cientistas começaram a encontrar para as "questões fundamentais" contestavam as defendidas por Roma. Para combatê-los, a Santa Sé acionou a temida Inquisição. As vítimas mais famosas foram os astrônomos Galileu, condenado a prisão domiciliar, e Giordano Bruno, queimado na cruz. Dois séculos depois, o naturalista Charles Darwin não chegou a ser perseguido. Mas, como era profundamente religioso, a simples idéia de contestar a Bíblia com sua teoria da seleção natural o atormentou por toda a vida. Tanto que levou mais de 20 anos tomando coragem para publicar A origem das espécies – em 1871 suas diferenças com a Igreja se transformaram em polêmica pública com o lançamento de A descendência do homem, onde aponta o parentesco entre homens e macacos.

Darwin não foi o único que se sentiu dividido entre suas convicções científicas e sua fé. A história da ciência está cheia de exemplos famosos como os de Isaac Newton e Einstein. Mas, segundo a revista Science, esse tipo de tormento é cada vez menor em um número cada vez maior de cientistas. Para Francis Collins, geneticista do Instituto Nacional de Pesquisas do Genoma Humano, "quando alguma coisa nova é revelada sobre o genoma, experimento um sentimento maravilhoso de satisfação ao perceber que a humanidade agora sabe alguma coisa que só Deus sabia antes". O genoma é a célula que guarda o código hereditário dos seres vivos. Para Collins, "muitos cientistas não sabem o que estão perdendo por não explorar seus sentimentos espirituais".

Essa referência ao lado "espiritual" da vida, contudo, já foi mais do que suficiente para deixar alguns de seus colegas de cabelo em pé. "Na cultura acadêmica pós-moderna, muitos cientistas ainda pensam que para ser levados a sério devem zombar da fé", argumenta David Scott, físico americano da Universidade de Massachusetts. Outros se prenderiam ao agnosticismo, segundo o qual a investigação científica deve refutar a fé enquanto não se descobrir uma evidência científica para o divino – tema explorado no filme Contato (leia reportagem à pág. 111). "A característica efêmera de muitas teorias científicas, agravada pela rapidez do avanço tecnológico, está diminuindo a prepotência dos cientistas", avalia André Porto, coordenador do Movimento Inter-religiosos do Instituto de Estudos da Religião, em São Paulo. Para dom Estevão Bittencourt, teólogo da PUC-RJ, "foram as próprias dimensões infinitas do cosmo que levaram os cientistas a buscar uma causa que se aproxima de Deus".

Numa posição mais conciliadora estão aqueles que não vêem nenhum conflito entre ciência e religião. É o caso de Stephen Jay Gould, da Universidade Harvard e um dos mais conhecidos divulgadores da ciência. Tanto ele acha isso que chegou a ficar intrigado com a declaração do papa João Paulo II sobre a teoria da evolução. "A Igreja Católica nunca se opôs à evolução", diz Gould. "Por que o papa precisou vir a público para reafirmar isso?", indagou em um artigo para a revista Natural History. Gould lembra que o papa Pio XII havia feito isso em 1950. Na encíclica Humani Generis, afirmava que os católicos poderiam acreditar no que a ciência determinasse sobre a evolução humana, desde que se aceitasse a participação de Deus no ato de infusão da alma no corpo da criatura. Mas a encíclica de Pio XII continha uma ressalva. A evolução só deveria ser aceita pelos católicos no momento em que fosse provada cientificamente. "Como dos anos 50 para cá ela foi comprovada diversas vezes, João Paulo II deve ter concluído que era tempo de avisar os católicos." Mesmo se definindo como um cético, Gould deixou escapar uma esperança religiosa ao homenagear o falecido amigo Carl Sagan. "Compartilhávamos a suspeita da inexistência da alma. Mas não vejo melhor razão para esperar que estejamos errados do que a perspectiva de passar a eternidade vagando pelo cosmo conversando com uma alma maravilhosa."

Colaboraram: Clarice Meireles (Rio de Janeiro), João Fábio Caminoto (Londres), Osmar Freitas Jr. (Nova York) e Sérgio Limolli (São Paulo)